Carta para Jane (1972)

 Para refletir sobre o papel dos intelectuais na revolução, Godard produziu Carta para Jane, uma verdadeira aula de como ler uma fotografia.


Foto publicada no jornal L’express, em 1972, mostrando a atriz Jane Fonda conversando com habitantes de Hanói.
Descrição: Fotografia em preto e branco. Mostra Jane Fonda, à esquerda, olha atentamente para pessoas que estão à sua frente de costas para a fotografia.



Em 1972, o Vietnã do Sul e o Vietnã do Norte se encontravam em guerra e os Estados Unidos recebiam constantes críticas por seu apoio ao Vietnã do Sul que resultava em estratégias violentas contra o norte, quando um episódio excepcional se desenrolou: a estrela de Hollywood Jane Fonda viajou a Hanói, convidada pelo governo do Vietnã do Norte, onde visitou as tropas norte vietnamitas, fez transmissões na rádio do país e foi fotografada com prisioneiros de guerra americanos e em uma base utilizada para derrubar aviões dos Estados Unidos. A visita foi resultado de sua militância contra a Guerra do Vietnã e, principalmente, contra a participação dos Estados Unidos no conflito, e foi planejada como uma propaganda pelos norte vietnamitas. O episódio rendeu a ela o apelido “Hanoi Jane”, pelo qual ela é conhecida até hoje, além de ser considerada uma traidora da pátria pelo americanos.

Porém, enquanto os americanos a julgavam pela propaganda que realizou no país, os cineastas franceses Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin, tinham outras críticas a fazer sobre o ocorrido, lançando um curta-metragem para analisar a situação. "Carta para Jane", é o resultado da reflexão de dois comunistas que desejam pôr uma amiga da revolução no caminho certo, e eles o farão através da leitura de uma única foto. Apesar de ter sido lançado para o cinema, o filme é muito parecido com o que conhecemos hoje como podcast, tendo algumas fotos exibidas (obviamente, a foto a ser analisada ocupa mais tempo na tela), enquanto Godard e Gorin literalmente leem uma carta para Jane.

A foto que inspirou o filme foi publicada no jornal francês L’express, em agosto de 72, e a justificativa dos cineastas para que essa foto fosse analisada é que “milhares de pessoas usaram essa foto para ir ao Vietnã” e resta saber “como foram”, qual a maneira que as foto as transportou ao país asiático. Eles também utilizam a fotografia para discutir que papel devem ter os intelectuais na revolução, visto que ambos são diretores de cinema e o uso de imagens faz parte do seu método de revolucionar.

A foto em questão  mostra a americana olhando uma pessoa a sua frente (um vietnamita), com uma expressão séria. A pessoa que ela observa está de costas para a foto e não é possível ver o seu rosto, enquanto o da própria atriz é visível. Em segundo plano supostos vietnamitas aparecem desfocados. Os diretores, porém, buscam interpretar, além da própria imagem, fatores externos a ela.

Esse modo de interpretar me remeteu imediatamente ao ensaio “A mensagem fotográfica”, no qual seu autor, Roland Barthes, organizou os meios de construção da mensagem da fotografia de imprensa, cuja a totalidade “é constituída por uma fonte emissora, um canal de transmissão e um meio receptor. A fonte emissora é a redação do jornal [...] O meio receptor é o público que lê o jornal. E o canal de transmissão é o próprio jornal…”. Não é absurdo, portanto, que Godard e Gorin considerem como elementos da sua análise o fato de que a foto foi feita do jeito que foi feita para que pudesse ser veiculada nos jornais ocidentais. Assim sendo, havia um  meio receptor específico para o qual a mensagem foi construída, além de um canal de transmissão que era alheio ao assunto da fotografia. Além disso, eles destacam que o texto que acompanha a foto, incluindo a informação sobre o fotógrafo e a atriz, foi escrito pelos redatores do jornal, sem consultar a delegação vietnamita na França, isto é, a fotografia possui uma fonte emissora que também tinha propósitos diferentes aos daquele que visavam os norte vietnamitas.

A redação do jornal também é responsável pelas legendas da fotografia, fonte conflituosa de interesses, pois como Godard e Gorin enfatizam: “Essa fotografia, como toda fotografia, é fisicamente muda e fala pela boca da sua legenda”. E, neste caso, a legenda diz “Jane Fonda faz perguntas ao povo de Hanói”, enquanto a imagem mostra Jane de lábios fechados, aparentemente apenas escutando, enquanto o jornal não se preocupa em apresentar as perguntas que foram feitas ou as respostas que foram dadas. O jornal dá importância apenas à estrela de Hollywood, seja ouvindo ou perguntando, e não ao outro lado implicado na ação de ouvir ou perguntar.

O que os diretores consideram “elementos menos elementares”, por sua vez, fala dos aspectos da composição, aqueles escolhidos pelo fotógrafo para que a foto chegasse no L’express. Eles citam a escolha de deixar Jane no plano principal (enquanto aos vietnamitas estão reservados os plano internos), o enquadramento que mostra a atriz que olha e não quem ela olha e a escolha do contra-plongé, que, como eles esclarecem, seus significados sociais já haviam sido delimitados por Orson Welles em seus primeiros filmes como um modo de colocar o ator enquadrado em uma posição de superioridade, ou no caso de Jane Fonda, na posição de uma estrela de Hollywood.

Em conjunto com esses fatores, há a escolha das outras fotos que constroem a fotorreportagem do L’express, mostrando a atriz em cenas banais no Vietnã, sem que as fotos conversem entre si (principalmente para explicar o que não se pode captar na foto principal) e sem que o texto que as acompanha dê mais detalhes sobre os habitantes de Hanói que aparecem ali. Essas acepções também me remeteram a “Mensagem Fotográfica”, em uma parte específica em que é citada a relação entre o texto e a fotografia para a construção da mensagem. Para Barthes, o texto é um parasita da imagem que traz a tona significados secundários, como uma moral que não se pode ver. A legenda da foto em Hanói, ao sugerir uma conversa, preencheria, segundo Godard e Gorin, a expressão vazia de Jane de empatia e benevolência.

Eu acredito que se a legenda nesse caso obtém êxito, é porque se une a um elemento que Barthes denomina “pose”. Mesmo que não estivesse consciente da fotografia, a maneira como foi retratada, com o olhar focado na pessoa que fala consigo (mesmo se esse foco tiver durado só o mísero instante que o obturador foi acionado) faz com que a fotografia aceite a legenda. Além disso, a combinação das fotografias dentro da reportagem pode ser vista como um processo que o semiólogo denomina “sintaxe”, ou seja, a mensagem é influenciada pela leitura da sequência de fotografias. Assim, se as outras fotografias relatassem outros momentos da suposta conversa com os vietnamitas, a construção da mensagem poderia pender para um maior protagonismo dos revolucionários.

O filme foi capaz de me trazer essas e várias outras referências de leitura fotográfica, algumas que eu nem sabia possuir e, mesmo que eu ache que Godard e Gorin estavam agindo de má-fé e utilizando dos conhecimentos sobre composição fotográfica para tornar a sua interpretação verdadeira, me vi utilizando as minhas próprias referências para contemplar as referidas no filme, construindo aquela análise que nem era a minha. Não é à toa que, quando Susan Sontag trata do filme em seu livro ao discorrer sobre legendas de fotografias, o considera “uma lição exemplar de como ler qualquer foto, como decifrar a natureza não inocente do enquadramento, do ângulo, do foco de uma foto”. Na minha opinião (e eu me sinto à vontade para usar a expressão, tendo em vista a imensa quantidade de vezes que é usada no filme), é também um exemplo de como todos os princípios compositivos e aspectos da denotação e conotação fotográfica podem ser usados para reconstruir a mensagem da fotografia, de acordo com o sentido social que foi produzido em cima desses artifícios.

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