A mesa da cozinha

Fotografia de Carrie Mae Weems explora ancestralidade e feminilidade
Como se tornar uma mulher? É difícil dizer em que momento da vida nós mulheres passamos a nos reconhecer como tais. A fotografia de Carrie Mae Weems tenta explorar essas questões ao trazer uma figura influente para muitas - a mãe - como fator chave para essa transformação. 

Carrie Mae Weems

Descrição: mãe e filha sentadas sobre a mesa, a primeira no centro da imagem e a segunda a direita, as duas passam batom enquanto se olham no espelho

A série A Mesa de Cozinha (The Kitchen Table) foi lançada em 1990. Composta de vinte fotografias e diversos textos, Carrie Mae Weems explorou a experiência e a vida da mulher preta através de cenas performadas na mesa da cozinha. Atuou em todas elas, enquanto outros personagens de sua vida - marido, filha, amigos e amigas - a rodeiam em diversas fotografias. 

A luminária aparenta ser a única fonte de luz na imagem, sendo responsável por clarear e revelar todas essas cenas. Em um jogo de luz e sombra, tudo aquilo que está iluminado nos dá a sensação de revelação, fazendo com que a imagem não seja apenas um olhar para o cotidiano de uma família, mas para a intimidade, os segredos e os sentimentos dessas figuras. 

A fotografia acima tem a mãe - que é interpretada pela própria autora da imagem - e sua filha como os personagens principais. Elas não se olham, pelo contrário, os olhos ficam presos em suas imagens refletidas pelos espelhos postos à mesa. Isso não faz com que elas não estejam cientes da presença uma da outra, já que seus movimentos, por serem idênticos, insinuam que elas repetem  essa mesma ação já a um tempo, ou que uma se espelha na outra. A forma como as duas passam batom com a mão direita e repousam a esquerda sobre a mesa, o jeito que se inclinam e abrem a boca, e, até mesmo, a maneira em que os espelhos são  predispostos, tudo isso revela um saber inconsciente, quase como um ensaio bem coreografado do que o outro está fazendo. 

Quando eu era pequena costumava brincar com os saltos altos de minha mãe. Ela, que saia de casa para o trabalho de manhã e só voltava tarde da noite, era uma figura um tanto quanto misteriosa, mas ao mesmo tempo charmosa. O salto alto que usava todos os dias não era apenas um símbolo de beleza, mas também de futuro desejável. Enquanto aqueles sapatos não me serviam, ainda não havia atingido aquele ideal imaginário que eu mesmo havia criado. Porém, apenas usá-los, enquanto via meu reflexo no espelho, já era uma forma de sanar a ansiedade de “ser mulher''. Aquela brincadeira era sobre uma feminilidade que eu desejava alcançar, era o que eu entendia como belo e  valioso. 

Me peguei a pensar sobre quem está refletindo quem. Faz sentido pensar que a mãe, sendo a figura mais velha, com mais experiência de vida, acaba por influenciar a filha que, assim como eu fazia, repete cada pequeno gesto, mesmo que inconscientemente. Assim, a mãe seria o reflexo do anseio da filha, do que é belo e do que significa ser adulto. Porém, da mesma forma, e, talvez, na mesma medida, a filha é o reflexo/representação do que a mãe era com a avó, da juventude que também teve um ímpeto de crescer e agora regressa ao papel. 

Ao olhar para o espelho, a mulher e a menina não veem apenas suas auto imagens, algo mais precioso está sobreposto no ato de se maquiar.  Existe também uma ancestralidade, um passar de conhecimento  de geração a geração, uma naturalidade de repetições de conceitos da experiência de vida. Para Carrie Mae Weems e sua filha, além do compartilhamento desses atravessamentos, é também o reflexo da vivência preta, de um lugar seguro,  onde mãe e filha podem encontrar em si o que significa ser feminino.

#leitura é uma coluna de caráter crítico, com periodicidade semanal. É publicada toda quarta-feira pela manhã. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, estética, histórica, política, social ou técnica. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor a coluna #leitura? É só seguir este link.

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