A autoimolação de Thich Quang Duc

A fotografia do monge em chamas ainda causa choque 58 anos depois e se tornou símbolo de revolução.

Algumas imagens se tornam permanentes no imaginário do público, seja por sua alta difusão, importância cultural ou por se tornarem um marco que é constantemente relembrado. A obra “A autoimolação do monge” é uma das cenas mais chocantes e icônicas da história da fotografia que não só aterrorizou diversas pessoas, como também ajudou a trazer discussões que antes não recebiam a devida atenção. 

Malcolm Wilde Browne


A serenidade do monge e a fúria do fogo são dois estados conflitantes que se misturam em um emaranhado de significados. Mesmo com a metade de seu corpo  sendo tomada pelas chamas, Thich Quang Duc continua imóvel, sentado em uma posição de meditação. É difícil determinar o que exatamente estava pensando enquanto tudo ocorria, ou como conseguiu suportar a dor de queimar até a morte, mas não somente a fotografia, diversas testemunhas oculares citam não terem visto o monge se mover em momento algum, apenas quando seu corpo caiu morto no chão.

Ao observar mais ao fundo é possível enxergar diversos outros monges que observam, sem intervenções, atentamente tudo o que está ocorrendo.  O galão branco no lado esquerdo inferior da imagem serve como uma explicação de qual é a origem do fogo, além de deixar claro que o ato foi proposital. E assim, com muita naturalidade, um dos maiores medos humanos, morrer queimado, é representado como uma escolha.  

O fotógrafo Malcolm Wilde Browne, responsável pelo registo,  explica que começou a fotografar imediatamente como uma forma de conseguir lidar com aquela cena pavorosa. Ver uma pessoa morrer aos poucos é uma cena difícil de digerir. Browne parece encontrar atrás da câmera um local de refúgio.  Apesar do choque, o registro foi bem calculado, uma vez que a manifestação havia sido divulgada anteriormente pelos monges. o feito garantiu o Prêmio Pulitzer de Serviço Público e de Foto do Ano pela World Press Photo para o fotógrafo. 

Tudo começou no dia 11 de junho de 1963. O Vietnã do Sul passava por uma intensa tensão religiosa em que o regime de Ngo Dinh Diem perseguia monges budistas e havia criado uma política religiosa que excluía o budismo. Durante um protesto contra o governo na cidade de Saigon, o monge Mahayan Thich Quang Duc, que tinha 66 anos na época, resolveu cometer a autoimolação como forma de protesto. A Guerra do Vietnã que já durava 5 anos, fez com que a invasão de culturas ocidentais, principalmente do domínio americano, fizessem com que a influência do catolicismo se fortalecesse ainda mais, facilitando com que Diem tomasse medidas discriminatórias contra os budistas. Porém, mesmo entendendo o contexto por trás da fotografia, ainda é difícil de mensurar o que leva um homem pacífico a atear fogo sobre o próprio corpo. 

A autoimolação é o ato de atear fogo sobre o próprio corpo, normalmente como protesto ou martírio (Dicionário Informal). Parte do choque e do horror despertados em diversas pessoas que entraram em contato com a fotografia, vinham de uma disparidade entre culturas. A autoimolação é na verdade um tipo de protesto comumente usado no hinduísmo e xintoísmo, em uma espécie de ritual que poderia representar protesto, devoção ou renúncia. O sati, por exemplo, era um antigo costume de comunidades hindus em que uma esposa viúva cometia um ritual de se jogar ao fogo junto de seu marido morto, até que foi proibido pelas leis do Estado Indiano. Além disso, apesar do suicídio ser um desvio dos preceitos do budismo, o ato também é utilizado como protesto por muitos monges e praticantes, sendo uma prática controversa entre autoridades budistas que debatem sobre sua relação com as tradições religiosas. 

Mohamed Bouazizi, cuja autoimolação é considerada por muitos como o estopim da Primavera Árabe, é um exemplo de como a prática também é muito forte no Oriente Médio como um todo, além de revelar como o ato pode gerar uma movimentação social inexplicável. A onda de protestos que seguem essa mesma linha acontecem até os dias de hoje, muitos inspirados em Bouazizi. 

Para entender a autoimolação  em casos como esse da imagem, é importante ressignificá-los além da categorização de “suicídio”. Para muitos admiradores de Thich Quang Duc e Bouazizi, morrer em prol da religião e da liberdade de um povo é um ato de revolução. Mais do que desespero, é um ato de justiça, sacrifício e devoção. 

São nesses momentos que percebemos a importância do fotojornalismo. Caso Browne não tivesse registrado o momento, o resto do mundo não viraria os seus olhos para a Guerra do Vietnã e o governo de Duc não anunciaria reformas a fim de tentar negociar com a população. O monge foi e ainda é visto como um símbolo de bravura e resistência, fazendo com que muitos monges da época chegassem a cometer a autoimolação após a divulgação da imagem.

A fotografia foi mais tarde utilizada como capa do álbum de estréia da banda Rage Against The Machine, demonstrando o seu impacto até mesmo na cultura pop. As músicas que carregam comentários políticos parecem levar a imagem do monge como a de um símbolo de revolução, assim como os budistas. Isto mostra que o poder da fotografia de Browne fez com que Thich Quang Duc virasse um signo de luta que qualquer pessoa possa se identificar, mesmo que sua realidade seja bem diferente da de um vietnamita daquela época.  

#leitura é uma coluna de caráter reflexivo. Trata-se de uma série de críticas de imagens fotográficas de relevância artística, cultural, histórica, política e social. Nela, a autora ou o autor da postagem compartilha com os leitores a sua leitura acerca da obra abordada. Quer conhecer melhor as postagens da coluna? É só seguir este link.

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